A cólera
Ela estava ali tomando mais um copo de cerveja sem álcool. Talvez fosse um copo de esperança. Ou um copo de amargura. Ela mantinha os lábios caídos, como se as próximas palavras fossem puro tormentos. Os bolsões debaixo dos olhos inflavam o seu olhar. Um olhar profundo, vazio e sem direção. Um mar de tristeza.
Ela estava pronta para desabar para qualquer um que estivesse ali por perto. Histórias desacabadas, cheias de culpados e confissões estavam prontas para serem atiradas. Atiradas para o primeiro que se sintonizasse naquele oceano de insensatez.
Desde que eu a conheço, ela sempre esteve assim. Longe. Ingrata. Reclamona. Pronta para apontar dedos para todos os culpados da miséria da sua vida. Não confunda uma vida miserável com dinheiro. Por mais que nossos amigos humanos gostem de relacionar riqueza e felicidade, elas nada têm a ver entre si. Uma pessoa miserável não quer dizer que está em miséria de dinheiro. Essa miséria a que eu me refiro é uma miséria de alma. Uma desconexão profunda com a vida.
Aliás, os humanos não gostam que eu fale mas ser feliz sem condições para sentir essa felicidade, é o que faz o melhor dessa experiência fluir na sua vida. Até mesmo o dinheiro. Mas essa é conversa para outra hora.
Eu não consigo parar de pensar nessa miserável senhora aqui bem na frente. Uma miséria de viver um cabelésimo dessa vida. Desde que eu me lembro dela, ela tem os traços humanos de luta. Sempre lutou para ter um corpo padrão Gisele Bunchen, segundo suas próprias palavras. Cirurgias e cirurgias. Zero sucesso. Para sempre Sr Corpinho de Batata.
Uma vez, esses olhos apavorados começaram a atirar bombas de vergonha. Do seu próprio corpo. Ela queria ir para a academia, fazer exercícios. Porém, ela tinha uma vergonha indescritível do seu corpo. “O que eles iriam pensar dela?” Afinal, tantos corpos lindos e maravilhosos e ela ali, aquele corpinho de batata. Aquele esculacho de desperfeição humana. Ela não conseguiria sobreviver a essa tempestade de vergonha.
Eu sei que a vergonha é uma das piores emoções que existem. Porque ela me corrói por dentro. Como se fosse uma soda cáustica sempre esperando a oportunidade perfeita para efervescer nos meus pensamentos. Quanto mais eu tento escondê-la, mais voz eu dou para ela. Quanto mais eu penso nela, mais forte ela se torna dentro de mim. Uma companhia miserável.
Eu também compreendo de coração que eu só me conecto com essa senhora porque eu já estive ali, perdida nessa experiência de vida. Foi me ensinado que:
Eu precisava ser sempre magra porque somente mulheres magras tinham namorados.
Eu precisava ser magra, sempre linda, maravilhosa e bem arrumada, só assim eu teria um casamento perfeito e para sempre.
Eu precisava sempre contabilizar o que eu estava comendo, afinal era a receita do sucesso.
Eu precisava comer sopas para fazer dietas extremas porque era a forma certa e rápida para perder peso. E eu precisava perder peso bem rapidamente, era uma vergonha o mundo me ver com aqueles quilinhos a mais.
Eu precisava usar roupas adequadas para ser bem vista pelas outras pessoas.
Esse era o mundo mesquinho e pequeno dos humanos que me foi apresentado. Não era uma surpresa que eu era a própria miséria. E eu sabia que eu me conectava com essa senhora porque eu identificava essa miséria dentro de seu ser.
A diferença é que tudo isso virou para mim apenas uma história. Uma boa história para ser compartilhada. Por isso que essa situação era tão atraente para mim:”ah se esses humanos soubessem o quanto é fácil viver essa vida, eles nunca mais perderiam um milésimo de segundo pensando em coisas de que não gostariam.”
Eu tinha soltado essa amorosa intenção de falar sobre a minha experiência de amor com meu próprio corpo. E eu sei que se ela realmente quisesse escutar, ela começaria um diálogo.
Talvez seja esse seja o meu maior aprendizado de todos os tempos: não forçar nada. Deixar acontecer. Ter um desejo intenso. E sair da frente. Deixar acontecer.
Os humanos ainda insistem em agir por agir. Agir todos os dias. Agir a todo custo. Mas esse mundão lindão não é movido por ação. Ele é movido por energia, uma linda e perfeita energia amorosa.
E quando eu compreendo com o cabeção e com o coração como essa energia amorosa funciona, eu me abri para ter a melhor experiência possível de vida e que eu nunca tinha imaginado ser.